quarta-feira, 14 de janeiro de 2015

Hoje, falo de sua alma, de seu coração



Muito falei dela.

Falei dos seus cabelos. Referi-me às suas mãos. Dos seus pés me declarei.

Hoje, falo de sua alma, de seu coração.

E vou começar do começo.

Quando ela nasceu, creiam-me, alguém profetizou: “Viva e viva por muito tempo. A menina vai ser útil aos outros”.

Assim foi.

Em seu coração – assim como nas asas de uma rolinha e na bênção de Nossa Senhora – sempre tinha espaço para todos, e é por este espaço que se percebe e goza a doce alegria de fazer o bem. Espaço que não recrimina, recinto que não cria mágoa, lugar que perdoa, anistia e absolve. Esta foi sua escolha, este é o desígnio de Deus para ela – e para nós -, esta é a sua vida.

Para esta admirável alma, perdoar era um gozo ilimitado, parecia achar uma fascinação muito especial no ato de perdoar. Tratava-se para ela apenas, creio eu, de uma ventura banal o que para nós, algumas vezes, está acima de nossas forças e muito abaixo de nosso ego.

Não é difícil recordar que no meio de grandes dificuldades, angústias e atropelos ela soube conservar um coração crente, magnânimo e simples. “E dessa gente sabe-se que Deus não se esconde”, pois lhe é buscado com um coração sincero.

Vê-la no oitão, ajoelhada e rezando, é uma imagem dessa mãe encantadora que tão graciosamente se dirigia a Deus que na minha alma ficou como uma das visões mais belas e mais indeléveis da minha vida.

Falando para ela de nossas dificuldades, ouvia-nos, bebendo-nos as palavras e, nalgumas vezes, com os olhos cheios de lágrimas, oferecia-nos o colo, simplesmente o colo. A esse colo, sem exagero, devemos dar o nome de amor.

Agora, aos cento e cinco anos, podemos todos dizer: és uma criança, mas és melhor de todos nós, minha boa, minha querida mãe.

Marcas do seu caminhar. Sinais do nosso caminho.




Marcas do seu caminhar. Sinais do nosso caminho.
Pés que iam sempre mais além, na cata do novo, na busca da beleza
que o Pai estende além de suas fronteiras.
E nessas passadas mostrava-nos os sinais de luta e esperança.

Pés que caminhavam ao nosso lado, às vezes.
 Noutras, antes de nós. Quase sempre, à nossa frente. Às vezes,
era sentirmos sua presença, seu apoio, o cheiro da compaixão.

Noutras, quando alguém se retardava e ficava, era a hora do apoio, do ombro e do colo.
Quase sempre, estava a nos indicar o verdadeiro caminho,
nem sempre o mais fácil, certamente o melhor.

Marcas do seu caminhar. Sinais do nosso caminho.

Pés que nunca nos deixava caminhar sozinho, ou melhor dizendo,
 nunca nos deixava caminhar solitário.
O caminhar juntos é um gesto de sair de si mesmo.

Pés de mais de um século que seguiu sempre um caminho de abertura a Deus.

Beijá-los, mais do que um gesto de humildade
é um sinal de reconhecimento de sermos pequenos diante daquela
que sempre esteve atrás de nós, ao nosso lado e, principalmente, à nossa frente.

Beijemo-los!



NATAL – JOSEFINAS - 2014

A irmã Socorro Beleza pediu-me que dissesse algumas palavras recordando o ano que passou. Lógico que ela se referia ao Ano Litúrgico.

E, assim como no ano passado, nós estamos no período do Advento nos preparando para o Natal. Depois vem as oitavas de Natal, em seguida o Tempo Comum, chega Quaresma onde a gente se prepara para a Semana Santa. Depois Pentecostes, Tempo Comum e chegamos ao Advento mais uma vez.

Se usarmos a imagem de uma montanha, poderemos dizer que o ano litúrgico nos convida sempre novamente a subi-la como que em espiral. De ano em ano passamos pelas mesmas paisagens, mas a cada vez a celebração dos mistérios nos atinge de modo diferente, ou deveria nos atingir de forma distinta, devido à nossa realidade sempre inédita, nova, incomum. Isso depende da intensidade de nossa participação e de nossa abertura ao mistério.

O certo é que nós fazemos isso ano após ano, fazemos essa subida em espiral e nessa caminhada cumprimos todos os preceitos, participamos de todas as celebrações, fazemos novenas, vamos à missa. No entanto, corremos o risco de não mudarmos o nosso modo de ser, a nossa maneira de agir, o nosso comprometimento.

O ano litúrgico parece não mexer com a gente. Se o ano Litúrgico não mexe nem remexe com nosso dia-a-dia, essa nossa caminhada está sendo vazia, sem criatividade e sem paixão. Apenas a cumprimos embora de maneira rotineira. Repito, apenas a cumprimos, mas o nosso modo de agir, o nosso comportamento não muda. O ano Litúrgico parece não nos dizer nada, não nos toca, parece ser outra coisa. É como se fossem duas coisas distintas: nossa vida eclesial e nossa vida na sociedade.

O papa Francisco nos alerta quando diz que “se, através de Jesus, Deus se comprometeu com o homem a ponto de se tornar como um de nós, quer dizer que tudo o que fizermos a um irmão ou a uma irmã, a Ele o fazemos. Foi o próprio Jesus quem no-lo recordou: quem alimenta, acolhe, visita e ama um destes mais pequeninos e mais pobres entre os homens, ao Filho de Deus que o faz”.

Adicione às palavras do papa Francisco as palavras de João Batista, as quais sempre de novo ouvimos a cada Advento: “No meio de vós está ALGUÉM que não conheceis”.
Isso acontece porque, talvez, a gente não saiba aonde procurar. E onde encontra-Lo. É lá nas pessoas simples e humildes que devemos encontrá-LO. Pois são elas que têm testemunhos de amor. Como vai dizer Pagola: “São pessoas entranhavelmente boas”.

Essa gente pelas quais passamos e muitas vezes nem consideramos gente. Essa gente não é a Palavra de Deus, mas essa gente é a voz que nos convida a fazer o verdadeiro ano litúrgico. Essa gente não é a Luz, ninguém é a Luz, só Ele é a Luz, essa gente não é a Luz, mas irradia a Luz no seu caminhar, no seu testemunho, no seu sofrer.

Então, essa caminhada que fazemos em espiral, todos os anos, e que não mexe com a gente, deve remexer com nosso modo de agir. Talvez nossa caminhada tenha muita devoção e pouca fé. Fazemos novenas, terço dos homens, rezam-se mil Ave Maria, adorações. Tudo mais e tudo bem. Mas quem alimentastes, quem acolhestes, quem visitastes e quem amastes?

Enfim, parece ser mais fácil e cômodo praticar minha devoção do que vivenciar minha fé. E quando alguma vez vamos em busca do preso, do nu ou do faminto, principalmente agora nessa época do ano, quando levamos um prato de sopa à Praça do Ferreira, sempre o fazemos como se fôssemos melhor, superior a eles. Não conversamos com eles, não falamos de igual para igual, e, certamente, a verdadeira confraternização natalina somente pode acontecer entre iguais. E, por ventura, se alguém fosse maior, não tenhamos dúvidas, seriam eles.

Assim, nas palavras do profeta, a gente só percebe que começa a conhece-Lo quando Ele cresce e a gente diminui.

Então, somos convidados sempre de novo a subir a montanha, pois este caminho nunca está concluído. Como na vida de cada um de nós há sempre a necessidade de voltar a partir, de se erguer, de reencontrar o sentido dos passos de Jesus, de sua caminhada. Peçamos como salmista: “Fazei-me conhecer a vossa estrada, ó Senhor”.


Um natal cheio de paz e sabedoria para todos e todas da comunidade da, digamos assim, comunidade da Irmã Socorro Beleza.