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ma mulher de pouco estudo em sala de aula. Uma letra belíssima, quase
que desenhada.
Pouco sabia escrever, mas muito sabia ler.
Sabia ler nossas alegrias e tristezas. Nossas emoções e sentimentos.
Sabia ler nossa vida.
Nossas lágrimas, nossas preocupações, lia no nosso rosto.
O que estava ocorrendo com a gente, lia na nossa maneira de agir.
Se uma lágrima brilhava em nossos olhos, grossas lágrimas lhe corriam ao
longo de suas faces.
Se esboçávamos um riso, nos dois cantos da boca lhe nascia um sorriso.
Era assim. Por nós, dava a vida. Deu-se por nós.
O que hoje por ela fazemos é tão pouco, quase nada. Quanto mais nos
envolvemos com ela, mais nos desenvolvemos como filho, como irmão e como gente.
Parece que ela assim como está, tão velhinha, tão quietinha, não tem mais nada
a nos dar.
Ledo engano.
Ir lá, na 83, vê-la, senti-la e tocá-la nos fortalece. E a fortalecemos.
Esse encontro nutre nossa essência. Damos-lhe vida. Em nossas idas, digamos
assim, mais caseiras, nas nossas visitas mais simples, o ver, o sentir e o
tocar são tão necessários para sua vida como o óleo que lubrifica a máquina e a
faz funcionar.
É como existisse uma força que nos atraísse, que nos prendesse e nos
dominasse. É impossível não estar com ela. A essa força podemos dar o nome de
amor. Amor, sim, amor, ela é amor.
Sua vida foi amor, seu cuidar da gente foi amor. Todo amor é livre e
toda ação livre tem dois momentos: primeiro é preciso que se queira, depois é
necessário que se faça. Por amor, ela queria e fazia.
Poderia dar exemplos, inúmeros, cito pouquíssimos.
Cedo, café já pronto, levantava-se para abrir as portas e janelas; vinha
o sol, que parecia esperar esse momento, para inundar nossa casa, nossa vida, com
sua onda de luz.
À noite, partilhava o terço com todos nós, alertando àquele que se retardava
nas respostas. No final, ajoelhava-se diante da imagem da Virgem, enquanto já
dormíamos, concluía suas orações, fazendo o sinal da cruz e abençoando todos
nós.
Nas madrugadas de chuvas e goteiras, visitava nossas redes, cobria-nos
com lençóis e carinhos. Por amor, ela queria e fazia.
Dois, de dois, de quinze, cento e cinco anos.
Nesses dias, não estar com ela é privar-se de um momento de
contemplação, é abster-se da carícia de tocar seu meigo corpo, é renunciar o
amor gratuito, quase que divino.
Nesses dias, estar com ela é descobrir numa ação o agradecimento de sua
doação. É perceber que o seu “deu-se por nós” é retribuído, no tempo devido, por
aquilo que nos foi ensinado em vida, com palavra e ação. Pois o verdadeiro amor
é assim, vai amadurecendo e fortificando com o tempo, tornando-se um amor mais
livre e gratuito.
É pela luz que nossa casa se ilumina, é pelo carinho em nossas redes que
nosso ser se faz maior, é pelo terço da noite que nossa alma engrandece, assim
também, é “pelo amor que a fé se faz ativa”.
Deu-se pelo amor e pela fé ativa.
Parabéns para ela pelo que ela é e parabéns para nós pelo que somos...
dela.