sábado, 18 de julho de 2020

PARTE DOIS


SOLEDADE, uma lição de vida!
S
aibamos!

Saibamos nós que ali, naquele tempo, na SOLEDADE, éramos inofensivamente inocentes, discretamente sábios e modestamente inteligentes, e nem sabíamos.

Saibam vocês que não sabíamos.

Vivíamos uma vida tranquila e esperançosa.

Brotavam em nós três máximas, verdadeiras sentenças, que transformadas em regras, nos levavam a uma vida irresponsavelmente cheia de felicidade.

Primeiramente, éramos todos iguais.

Depois, amávamos uns aos outros.

E finalmente, sabíamos ser guiados por papai e mamãe.

Mamãe, que sabia adorar a Deus e conhecia a força da oração, quando não na cozinha nem na máquina de costura, dobrava os joelhos, numa piedade divina, naquele momento em que contemplava as faces de madre Mozzarella ou da beata chilena Laura Vicuña.

Educou-nos, nos terços, nas orações, nas devoções, e no entendimento a responder conscientemente ao chamado de Deus. Como diz a bíblia, quem tem temor a Deus será sempre galardoado.

Ali, na serra, orientavam-nos, papai e mamãe, com seus atos, suas maneiras, seus modos de agir bem, pois é assim, somente assim, agindo bem que se alcançam as boas obras.

À nossa disposição, as mais simples e suaves delícias, o mel com farinha, alfenim mais branco, a garapa mais doce, as frutas mais frescas, o feijão verde com mais rapadura, o frio e a chuva.

Ali, com essas delícias, fazíamos saladas das historias antigas e repetidas.

Tinha dias e dias de muita chuva, clarões na noite, relâmpagos, trovões. Uma chuvarada sem fim que caia do céu. Eram dias que permanecíamos juntos no alpendre.

Depois da tempestade, sempre retornava o sopro suave da brisa que nos enchia de bem querer. O sol voltava. E em volta do papai era sempre primavera, a paz partilhada, éramos felizes. Ninguém resistia a sua gargalhada, aquela risada forte e prolongada, um bom humor inabalável.

Ali, no alpendre, com toda simplicidade e sabedoria, nós aprendíamos quais caminhos nos levavam a viver em paz.

Ali, no alpendre, alimentavam em nós a fortaleza e a alegria de vivermos unidos dentro de nossas diferenças ou indiferenças.

E nossa casa? Que aconchegante!

No piso superior da grande casa, quartos, onde dormíamos com a inocência das crianças.

Ao fundo da cozinha, o paiol, que se escondia por trás do fogão, e nos aquecia quando o colo da mamãe já parecia ocupado. Os pais, por nosso egoísmo saudável, são feitos para serem repartidos. Não importa quantos filhos, sempre são tanto quanto seus braços podem abraçar.

Junto à cozinha, a mesa da partilha, do pão repartido e da comunhão. Dali, saíram legados que se encontram espalhados nos corações de nossas famílias.

Do engenho, nossos ouvidos eram inebriados por uma suave música que trazia paz e sossego aos nossos corações, eram os cantos daqueles que tangiam a junta de boi.

Sob as luzes de lamparinas, nas noites frias, víamos a mamãe nos enrolando em lençóis finos, que seu carinho faziam-se edredom.

Estar ali, na Soledade, com papai e mamãe, era como se sentisse que o amanhã seria melhor, cada momento era sempre melhor do que o anterior. A isso, hoje damos o nome de esperança.

Dizem que a virtude é o que o torna bom quem a possui e boa a obra que realiza.

Como sempre vi meus pais como boas pessoas, hoje, vejo-os cheios de virtude e que seus frutos foram uma boa obra. Acredito, assim, no que proferem.

A generosidade, própria deles, generosidade, no sentido de bondade, piedade e beleza, tornou um hábito em suas vidas. E toda virtude é um hábito.

Ali, onde tudo exalava encanto, nos acercava o sentimento mais belo que o ser humano pode ter:

O amor!

Faziam eles, papai e mamãe, do amor, um hábito.

Ali, a gente nem sabia, mas estávamos bem pertinho do céu.

É isso aí, irmãs e irmãos, procurei apreender os ensinamentos e a atmosfera que pairava sobre todos nós!


PARTE UM




O
 texto da “PARTE DOIS” é pra ler com o coração!

Degustando cada palavra, cada frase, cada momento.

Pra ser lido... revivendo!

Olhando pra dentro de si, lá dentro do coração, em busca do sacrário.

Pra ser lido...saboreando!

Principalmente para os privilegiados que viveram esse tempo. Que sentiram o sorriso aberto, o cheiro da terra molhada, da cana moída e da bosta do curral.

Um texto pra ler com fé.

Sabedor que o Espírito Santo sopra em todo lugar.

Que seus dons sempre estiveram lá e estão aqui, espalhados em nossas convivências.
E que muitos deles ainda estão no nosso sacrário, basta vivê-los.

Um texto pra lembrar do legado!

Somente acredito em legado como missão confiada.

Um texto pra se achar estranho.

Como diz a personagem Tituba:

“É estranho o amor por uma gente e por um lugar!
Nós os carregamos dentro, como nosso sangue, como nossos órgãos”.


Por fim, permitamos uma vez que se dê vazão ao coração, às lembranças mais remotas, e creia que o que foi escrito foi realmente vivido por nossa família.

João Lino Neto



quinta-feira, 9 de julho de 2020

Se ajunta e se espalha!



S
e alevanta minha gente.

Te alui, meu povo.

Cadê ceis?

Pensa que num dá saudade?

Pois sim!

Mexo e remexo e vocês nem nem.

Pois vô embora...

Vou voltar lá pro século passado.

Deu uma saudade danada. Daquelas que bole com o osso, absorta a gente e deixa o coração mole. E a gente fica meio sorumbático, macambúzio, ali, quietinho, guardando o silêncio sozinho.

Saudades da serra, da bela Soledade!

Do papai, da mamãe, do todos vocês. Do Mané Morais, do Chico, do Chico Catirino, da Didia, do 'muito horrível demais'. De tantos outros. Do cantar do galo, do perfume inigualável do engenho, da beleza do olho d’água, do cheiro de bosta de vaca no curral, do alpendre com um caçuá cheio de laranjas, da carioca, da burra castanha. Do bagaço de cana do engelho.

Ê saudades!

Do papai, que acordava no meio da noite quando nós ainda tínhamos muito sono pela frente.

Da mamãe, que bem cedinho, mas bem cedinho mesmo, não é o nosso ‘bemcedim’ cinco seis horas; se levantava antes do sol chegar, e ia pra cozinha ‘preparar tudo’.

Quando começava a aparecer filhos e filhos descendo os batentes pra tomar café, já tinha fogo no fogão a lenha, as panelas já tomavam as bocas do fogão. O café sempre estava pronto, o papai devia ter escapulido do engenho pra tomar um golinho de café, o leite mugido que ele ordenhara fervia numa das panelas.

E logo, logo, o cuscuz, os ovos estrelados ou cozidos, as tapiocas, tudo bem quentinho, começavam a chegar à mesa. Tinha coalhada pra quem quisesse e nata fresquinha. Tinha a névoa que invadia a casa pelas portas e janelas.
Tinha, principalmente, tanto amor, tanto carinho.

O grito de ‘ô boi’ e o cheiro do mel chegavam do engenho. Vinha também a gargalhada maravilhosa do papai.

Por toda parte estava a mamãe, estava lá onde a gente queria que ela estivesse, sempre estava lá. Sempre. Botando um pouco mais de leite no nosso cuscuz, fritando mais um ovo, fazendo outra tapioca.

Sempre estava lá. Sempre!

Vida boa, muito boa, claro que tinham coisas não tão boas. Deixa eu ver, deixa eu ver, juro que não me lembro.

Ah! Lembrei, era quando a mamãe mandava a gente escovar os dentes antes de tomar café.

Que belos dias. Que belo casal. Que bela família.

Impossível não sentir uma saudade danada daquele casal, daquele amor, daquele carinho.

Tempo que a gente se ajuntava... e hoje tão espalhado que nem nem.

Se alevanta minha gente.

Te alui, meu povo.

Cadê ceis?

João Lino

segunda-feira, 6 de julho de 2020

O Mandamento da Unidade e Dois Pensamentos




J
o 15, 12-17, coloca-nos as palavras de Jesus: “Este é o meu mandamento: amai-vos uns aos outros, assim como eu vos amei”.

Pseudo-Rufino fala-nos: “O gênero humano vive graças a poucos; se estes não existissem, o mundo pereceria...”.

Immanuel Kant, filósofo alemão do século XVII, diz: “Age de modo que a máxima da tua vontade possa valer sempre, ao mesmo tempo, como princípio de legislação universal”.

Três direções que se interligam e, entrelaçados, nos levam ao mesmo lugar.

O Mandamento da Unidade do amor de Deus e do próximo é a lei fundamental do serviço de qualquer cristão.

Não podemos fazer um trabalho caritativo sem uma relação religiosa, assim como um serviço beneficente não pode ser realizado sem uma espiritualidade que o anime. Fora desse raciocínio agiríamos de maneira que fosse simplesmente um serviço social. Ficaríamos sem o agir de Deus numa experiência comunitária.

E, se invertêssemos, fizéssemos um serviço com uma dimensão transcendente, mas sem nenhum cunho social, cairíamos no descrédito. O Mandamento da Unidade espelha precisamente sobre o atrelamento entre o rito e sua função social.

Nossa religião é exercida na terra onde pisamos, onde floresce pão para o corpo e alimento para a alma, numa aventura comunitária, graças a Deus.

Na medida em que me refiro à religião, falo de nossa liberdade e nossa responsabilidade.

Na medida em que essa relação existe, estamos nos pondo num nível de igualdade com toda comunidade; acenando para uma responsabilidade e uma liberdade que nos levarão a uma disposição e que tende a ultrapassar o nosso “eu”.

Na medida em que superamos o nosso eu, experimentamos uma situação de igualdade perante a comunidade, sabedores que nossas atitudes podem causar implicações às outras pessoas, e que, muitas vezes, podem trazer consequências desagradáveis.

No instante em que praticamos qualquer ato, todos demais irmãos e irmãs, aqui e além, têm o direito de realizar a mesma ação.

Nesse momento, gostaria de lembrar as palavras de Kant. Que a minha vontade “possa valer sempre, ao mesmo tempo”, para toda e qualquer pessoa.

Em tempo de pandemia fica muito fácil exemplificar:

Saio de manhã, vou ao centro da cidade, mesmo sem ter nada de imediato para fazer, dou uma volta, como um pastel com caldo de cana, por um momento, tiro a máscara que incomoda-me, depois perambulo em volta da Praça do Ferreira, e volto para casa.

Como existe o “princípio de legislação universal”, todos podem agir como agi. Imaginemos, então, uma aglomeração na praça, alguns sem máscaras por períodos pequenos... etc.  Imaginemos, por fim, quanta contaminação teríamos.

Para cada ação nossa, valem perguntinhas simples, porém necessárias:

Termos ido ao centro nesse tempo de pandemia pode se tornar um princípio universal?

Se dissermos que não, nossa ação foi individualista e egoísta, ferindo o mandamento da unidade. O qual nos obriga, como norma de comportamento, a vivermos nossa fé em sintonia com o destino da comunidade e, em especial, com um grupo de invisíveis que sofrem e aguardam agonizando uma morte prematura.

Se, contudo, nossa resposta for afirmativa, estamos agindo segundo o evangelista João, o filósofo alemão e o pensamento de Pseudo-Rufino, “O gênero humano vive graças a poucos; se estes não existissem, o mundo pereceria...”.

A concluir, poderíamos nos questionar:

Estou no meio desses poucos, amando o outro como Ele me ama?

Se dissermos que sim, escolhemos Jesus para tomar conta de nosso coração.